"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O MESMO ADVOGADO DEFENDE OS BADERNEIROS E O CHEFE DE UMA MILÍCIA. É SO COINCIDÊNCIA?

 

Fazem muito pouco caso da inteligência do brasileiro. E é preciso dar o braço a torcer: tem funcionado. Mas até quando?

O mesmo advogado que defende um assassino condenado como chefe de máfia (a milícia, grande apoiadora do governo do Estado) é o mesmo advogado que defende os black bloc baderneiros, acusado de assassinato de um jornalista (em protestos contra a prefeitura e o governo do Estado).

Que coisa, não? Você (sim, você!) não acha isso um pouco estranho, no mínimo? Só queria saber como essas coisas ainda conseguem ganhar repercussão existindo a Internet…
Será que com essa trama fajuta dá para o governo aprovar leis criminalizando qualquer tipo de manifestação, nas ruas e pela web, com o vigilantismo do Marco Civil da Internet e a Lei Antiterrorismo?

Eu acho que dá.
Lembrando que o povo continua nas ruas, em todo o mundo, e agora também na Venezuela.
A repressão não tem funcionado tão bem como antigamente. Uma hora essa represa vai estourar.

SE NÃO FOI O PSOL NEM O PSTU, QUEM FINANCIOU OS BADERNEIROS?

 



Após a declaração de Caio Silva de Souza de que “os partidos que levam bandeira são os mesmos que pagam os manifestantes”, dita em depoimento à polícia, representantes dos partidos PSTU e PSOL negaram qualquer financiamento a manifestantes.
 
O chefe de Polícia Civil, delegado Fernando Veloso, disse na manhã desta quinta-feira, que a Coordenadoria de Informações e Inteligência Policiais (Cinpol) e o setor de Inteligência da Secretaria de Segurança vão coordenar a investigação que apura o suposto aliciamento aos jovens Caio Silva de Souza e Fábio Raposo. Os dois, que já estão presos, teriam dito ao advogado Jonas Tadeu Nunes que foram aliciados e remunerados para provocar tumultos.
 
— Somos um partido de esquerda, com militantes que trabalham de forma voluntárias. Não pagamos sequer cabos eleitorais — afirmou o presidente nacional do partido, que acredita ainda que cabe a polícia investigar as acusações de que partidos estariam dando dinheiro ou qualquer tipo de ajuda a Black Blocs:

— O fato de militantes de partidos de esquerda levarem bandeiras para as ruas não significa que estes partidos estejam envolvidos. Se isso realmente acontece, o que os leva acreditar justamente os que estão lá com bandeiras estão por trás disso? Seria o mesmo que achar que bandido coloca placa nos local do crime — declarou.
Em nota, o PSTU também negou qualquer ligação com Black Bloc ou financiamento de manifestantes. O partido pede ainda que a denúncia seja apurada:

“Se eles receberam dinheiro para agirem como provocadores, exigimos que se diga quem os financiou. Não só quem financiou esses jovens, mas quem financia a defesa da dupla acusado-delator. No entanto, somos radicalmente contrários à perseguição que os governos vem promovendo contra os movimentos sociais. A violência instaurada naquele dia na Central do Brasil é de responsabilidade do governo e da polícia militar. Prestamos nossa solidariedade aos familiares de Santiago e continuaremos lutando para que novas tragédias como esta não aconteçam”, diz trecho da nota.
DEPOIMENTO

No depoimento dado à polícia, ao qual o jornal “Extra” teve acesso, Caio negou conhecer as pessoas que aparecem na manifestação e oferecem dinheiro a quem participa do ato. Segundo ele, “elas falam que se tiver com dificuldade financeira para voltar na próxima (manifestação), pode pegar com eles o dinheiro da passagem, bem como aparecem com lanches e quentinhas”.

Em outro trecho do depoimento, Caio não é taxativo mas diz acreditar “que os partidos que levam bandeira são os mesmos que pagam os manifestantes”. Ele informa já ter visto “bandeiras do PSOL, PSTU e FIP (Frente Independente Popular), sendo esta um dos grupos que organiza reuniões plenárias”.

###

NOTA DA REDAÇÃO DO BLOGSe não é PSOL nem é o PSTU, quem paga os vândalos e black blocs? Detalhe importante que precisa ser levado em conta na investigação: as bandeiras do PSOL e do PSTU sempre estiveram nos protestos, desde a primeira manifestação do grupo Passe Livre, na Avenida Presidente Vargas, que foi o começo de tudo no Rio de Janeiro e reuniu apenas cerca de 250 pessoas. Outro detalhe: PSOL e PSTU são partidos ridiculamente pobres. A acusação é grave e precisa ser apurada com seriedade. (C.N.)

13 de fevereiro de 2014
Simone Candida, O Globo

ENTRE MANIFESTANTES E TERRORISTAS


Aconteceu outra vez no Senado, quarta-feira. Debatia-se a nova lei tipificando o terrorismo quando a turma do “deixa disso” entrou em campo e adiou a discussão e a votação para nunca mais. Assim como fizeram os senadores, dias atrás, deixando de cumprir compromisso assinado por todos os líderes para a criação de novas regras que diminuiriam a dívida dos Estados e Municípios com a União.
 
Agora, a protelação é mais absurda. A pretexto de não contrariar manifestantes que ganham as ruas para protestar contra maus serviços públicos, gastos com a Copa do Mundo e outras questões, o Senado saltou de banda. Adiantou pouco senadores como Aloísio Nunes Ferreira e Pedro Taques lembrarem que terroristas e manifestantes pacíficos fazem parte de tribos distintas, ainda que possam misturar-se nas avenidas das principais cidades. Para dissociá-los é que existe a polícia. Aqueles que depredam, invadem e agora até matam, precisam ser identificados, investigados e enjaulados, porque são terroristas. Já os que protestam, mesmo interrompendo o tráfego e perturbando a ordem, exercem um direito constitucional inequívoco.
 
A solução não pode ser nivelá-los num único denominador e, por cautela ou malandragem, deixar de prender e punir os animais. Basta ver como se apresentam: uns portando artefatos, bombas e facas. Outros, no máximo levando lenços molhados para evitar os efeitos do gás lacrimogêneo e do spray de pimenta. Confundi-los pode ser comum no auge das manifestações, mas em quinze minutos dá para saber quem é quem. Mandar estes para casa e aqueles para a cadeia.
 
O que se verificou entre os senadores foi demagogia, já que os manifestantes ditos pacíficos votam. Podem influir nas tentativas de reeleição. Os outros devem perder a liberdade e, com ela, seus direitos políticos. O grotesco nessa decisão do Senado foi verificar ter sido superada a dicotomia entre situação e oposição. Gente de lá e de cá opinou pró e contra o projeto. Prevaleceu a maioria ávida de agradar a todos, manifestantes e terroristas.
 
RAZÕES EXPLÍCITAS
 
Aumenta o ritmo das diatribes e acusações da presidente Dilma aos seus adversários. Com duas pedras na mão, ela investe contra grupos e partidos, mesmo sem fulanizar os alvos. Há quem suponha, no fundo dessa postura violenta e virulenta, a necessidade de reafirmar sua candidatura ao segundo mandato. E se é levada a tais exageros, será por algum motivo. Estaria imaginando dificuldades futuras para reeleger-se?

SERÁ QUE RETORNAMOS A 1964?


Quem assistiu pela TV à manifestação promovida pelo MST, nesta quarta-feira, em  Brasília, na Praça dos Três Poderes e adjacências, com estimados vinte mil participantes,  chega à conclusão de que retornamos a 1964.


Assim, como naquela época, quando o Governo foi o manipulador e incentivador dos que visavam à quebra do ordenamento jurídico constitucional em vigor, acusando os EUA de conspirarem contra o presidente João Goulart, a realidade atual coincide com o que se passou em 64.Isto,porque esta passeata dos Sem Terra ,que juntaram-se ameaçadoramente no centro político da Capital, começou diante da Embaixada americana. O fato dispensa comentários, dada a estapafúrdia conotação entre as reivindicações alegadas e o objetivo inicial da “Caminhada”.
 
Parece evidente que a reunião de vinte mil pessoas, a maioria delas com uniformes e bandeiras vermelhas (em toda a multidão só vi uma modesta e humilhada bandeira do Brasil),tem de ser precedida de apoio logístico de grandes proporções. Vestir, transportar, alimentar, proporcionar facilidades sanitárias e assistência social a tantos participantes depende de organização esmerada, implicando altos gastos financeiros.
 
Supridos por quem? Esse dinheiro vem de onde? Quem os fiscalizados? Porque, o MST, nesse quesito,  apresenta um complicador intransponível para entendimento de como são conduzidas as suas atividades. Como é público e notório, o Movimento não tem personalidade jurídica.  Só este fato, que já o caracteriza como espúrio, deveria estar sendo alvo de investigação do Ministério Público Federal.
 
Vejo tais ações orquestradas por níveis superiores, no Governo Federal, que as garante, em todos os sentidos. O que se noticiou é que, para conter eventuais abusos da multidão havia 400 homens das forças de repressão para conter arruaças. Ora, 50 contra 1 seria, se a ordem viesse no sentido de “botar pra quebrar”, isto é, um jogo perdido antes de iniciar.
 
Em ocasiões como as desta quarta-feira, ocorre-me o seguinte: qualquer fato superveniente que possa inviabilizar a vitória da “Criatura Presidenta”, nas próximas eleições,  os exercícios para a guerra campal para justificar um regime de exceção, sem eleições, já foram feitos. Aos Sem Terra, todos eles e não apenas os manifestantes de hoje, se juntariam os 25 mil nomeados por Lula para os cargos de confiança, da Presidência da República -a tropa SS nos moldes da Whermacht do Hitler - que não sabemos o que fazem ou onde assinam ponto, porque os salários são-lhes creditados no silêncio da informática governamental.
As granadas já estão posicionadas. Só falta um motivo para dispará-las.
Será?

13 de fevereiro de 2014
Ana Maria Vellasco
 

INDICAÇÃO DE MINISTROS DE TRIBUNAIS SUPERIORES É BALCÃO DE FAVORES POLÍTICOS E PESSOAIS

 



O cerne do problema está na escolha dos membros dos tribunais superiores, na indicação dos nomes ficar na mão de políticos, o que resulta na imposição e nomeação de pessoas nem sempre portadoras de ilibada idoneidade e reconhecido saber jurídico.

Muitas vezes os nomes a indicados passam pelo sabidamente existente balcão de negócios, balcão de trocas de favores políticos e pessoais.

Devido a essa situação, é aberta a possibilidade para pessoas de notória ausência de moralidade, compostura, ética e aptidão profissional assumirem como desembargadores e até ministros de tribunais superiores.

No atual modo de escolha poderá chegar a ser membro da Suprema Corte brasileira um cidadão que tenha sido reprovado em todos os concursos públicos que prestou. Mas será aprovado na “sabatina” realizada pelos senadores, em face de interesses pessoais e políticos. Há a possibilidade de ocorrer um jogo de trocas e também o de um senador vir a ser julgado futuramente por uma pessoa que reprovou na “sabatina”.

A situação vigente poderá favorecer, e realmente favorece, a possibilidade da ocorrência de decisões judiciais contrárias ao direito; porém, de interesse de políticos poderosos. Há poucos anos, o jornal O Estado de São Paulo foi vítima de decisão que castrava seu direito de publicar notícias sobre membro da família de político influente. Uma decisão sem sentido, mas com objetivo claro.

AGRADAR O PRÍNCIPE

Todos gostam de agradar o príncipe; e o príncipe saber recompensar a quem o agrada. É uma relação de troca. É o que, algumas vezes, tem ocorrido na nomeação dos membros dos tribunais.

Tudo depende do político que está sentado no trono, de sua idoneidade e de seu entendimento alcançar que ali está para servir às instituições e não a interesses políticos e pessoais.

Lula sabe bem dessa situação, sabe que a regra oculta do jogo é a que vale. Porém, o que tem apresentado distorcido em seu pensamento e discursos é pensar que o jogo não acaba, que deve existir eternamente. E que a regra não escrita de fidelidade absoluta ao “poder nomeante” é de vigência perpétua. Uma relação senhor-vassalo, como a existente no nordeste dos coronéis.

É o que demonstram suas palavras com relação aos ministros que nomeou. Suas palavras têm deixado claríssimo que os ministros devem seus “empregos” a ele e portanto devem obedecer sua vontade; que devem ser fiéis a ele, Lula e ao PT e não às instituições.
E esse seu comportamento, pelo que se observa, não é limitado apenas aos membros do Poder Judiciário.

13 de fevereiro de 2014
Celso Serra

CAUSA MORTIS

Santiago Ilídio Andrade era nossos olhos e nossos ouvidos. Sem o trabalho dele, e de tantos colegas seus, cinegrafistas, jornalistas, funcionários de apoio, não teríamos notícias — ou só teríamos versões das partes interessadas.



O assassino de Santiago e seus cúmplices diretos, que compraram, transportaram e acenderam o rojão de vara, provavelmente não miravam o cinegrafista, mas os policiais. Contudo, sabemos pela palavra deles que devotam um mesmo ódio a jornalistas e policiais. Faz sentido: eles odeiam a democracia — e, deploravelmente, não estão sozinhos.

Santiago não é uma vítima “acidental”. Santiago é um cadáver circunstancial, mas anunciado desde as jornadas de junho. O que faziam, na periferia e na fímbria das manifestações, os vândalos, os depredadores, os mascarados? Eles abriam picadas no rumo de seu El Dorado: o sangue de alguém, qualquer um, policial, transeunte, jornalista, cinegrafista ou manifestante.

“Abaixo a ditadura 2.0”, leio numa página de Facebook consagrada à propagação do vandalismo. Os covardes, rosto escondido, precisavam provar a tese que justificaria sua própria existência: a democracia é uma farsa, a máscara da ditadura.

Santiago teve seu crânio destroçado por um foguete ideológico. Os autores da tese não acenderam o rojão de vara, não o transportaram e não o compraram. Esses intelectuais de araque, que são as fontes de inspiração do assassinato, talvez nunca tenham se misturado a uma manifestação de rua.

Eles circulam em esferas sanitizadas: universidades, ONGs, movimentos sociais, partidos políticos. Mas, enquanto a investigação policial desvenda os nomes de quem pode ser indiciado, cabe a nós decifrar as ideias que os mobilizam. O perigo está nelas: os pavios imateriais de foguetes ainda não lançados.

Santiago morreu porque, atrás dos assassinos, renasce uma velha teoria sobre a política e a democracia. As páginas eletrônicas dos black blocs definem a nossa democracia como um “Estado policial”. Um professor da FGV-SP, Rafael Alcadipani da Silveira, atribuiu a “estratégia da violência” aos “jovens das periferias”, “vítimas da violência cotidiana por parte do Estado”.

A expressão “contraviolência” foi difundida por intelectuais radicais nas décadas de 1970 e 1980 para celebrar o método de “ação direta” empregado por organizações extremistas que, cindidas, dariam origem a agrupamentos terroristas como o Baader-Meinhof, na Alemanha, e as Brigadas Vermelhas, na Itália. As fórmulas incendiárias daqueles intelectuais ressurgem entre nós, como frutos podres de uma crise política e moral.

Santiago está morto porque a fronteira entre a violência “simbólica” e a violência “real” só existe no pensamento depravado dos cultores da violência “simbólica”. Bruno Torturra, o chefão do Mídia Ninja, um “instituto” informal financiado com recursos públicos, definiu o Black Bloc como “uma estética” e fez a defesa da violência nas manifestações, “desde que dirigida aos bancos”.

O filósofo-ativista Pablo Ortellado, um herdeiro ideológico dos arautos europeus da “contraviolência”, declarou sua paixão pela “ação simbólica” de depredação de uma agência bancária, um simulacro da “ruína do capitalismo” situado “na interface da política com a arte”.

Mas por que eles nutrem uma obsessão exclusivista pelos bancos? O linchamento de um policial não poderia ser descrito como símbolo da “ruína da repressão de Estado”? O assassinato de um jornalista não anunciaria o almejado “controle social da mídia”?

Santiago morreu de excesso de violência “simbólica”, mas não apenas disso. “Não vamos parar, o poder é nosso!”, escreveu o Black Bloc RJ na hora da notícia do falecimento do cinegrafista. A causa mortis tem ramificações complexas, que deitam raízes na condescendência nacional com a violência “justa”.

A imprensa apressou-se, com razão e cumprindo seu dever, a denunciar as truculências policiais contra manifestantes pacíficos nos primeiros protestos de junho — mas custou a usar a palavra “vândalos” para qualificar os idiotas mascarados que se movem em busca de sangue.

Um certo número de sindicalistas, alguns deles ligados ao PSOL, firmaram um pacto de aliança com os Black Blocs na greve dos professores do Rio de Janeiro. Numa nota asquerosa, mas típica, o Sindicato dos Jornalistas do Rio omitiu a origem do projétil que vitimou Santiago. Fora algumas honrosas exceções, não se ouviu uma palavra de condenação ao vandalismo sair da boca dos célebres “intelectuais de esquerda”.

Santiago é uma vítima, entre tantas outras não ligadas a manifestações, da inclinação do governo a produzir rimas entre “pobreza” e “violência”. Três meses atrás, o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, anunciou que buscava “interlocutores” entre os black blocs para “compreender este fenômeno social” e entender “até que ponto a cultura da violência vivida na periferia já emigrou para esse tipo de ação”.

O poderoso ministro, representação onipresente de Lula no governo Dilma, fala uma linguagem paralela à dos intelectuais engajados na justificação dos black blocs. “Cultura da violência”? “Fenômeno social”? Não, de jeito nenhum: o rojão que matou Santiago é um projétil político dirigido contra o alvo da democracia.

Santiago morreu porque damos ouvidos a Gilberto Carvalho, não a Reynaldo Simões Rossi, o coronel da PM espancado por uma chusma de covardes durante uma manifestação em São Paulo. Rossi disse que seu dever era respeitar os manifestantes e isolar a “minoria de criminosos e vândalos” que “se apropriam de manifestações legítimas”.

Há algo de profundamente errado com um país incapaz de enxergar a face do mal, quando ela se esconde atrás da máscara de uma ideologia. A memória de Santiago exige que, finalmente, separemos os manifestantes dos vândalos — tanto nas palavras quanto nas ações.


13 de fevereiro de 2014
Demétrio Magnoli é sociólogo. O Globo

VIOLÊNCIA ANCESTRAL

 

As origens do comportamento agressivo do homem

 
 
Thomas Hobbes e Charles Darwin foram homens simpáticos cujos nomes se tornaram adjetivos detestáveis. Ninguém quer viver num mundo hobbesiano ou darwiniano (para não falar malthusiano, maquiavélico ou orwelliano). Os dois homens foram imortalizados no léxico por terem feito uma síntese cínica da vida em estado natural – Darwin, com a “sobrevivência do mais apto” (frase que ele usou, embora não a tenha cunhado), e Hobbes, com a “vida solitária, pobre, sórdida, brutal e curta do homem”. No entanto, ambos nos deram percepções da violência que são mais profundas, mais sutis e, no fim das contas, mais humanas do que fazem crer seus adjetivos epônimos. Hoje, qualquer tentativa de compreensão da violência humana tem de começar pelas análises que eles nos legaram.

Vou tratar aqui das origens da violência em dois sentidos: o lógico e o cronológico. Com a ajuda de Darwin e Hobbes, refletiremos sobre a lógica adaptativa da violência e o que ela permite predizer sobre os tipos de impulso violento que podem ter evoluído como parte da natureza humana. Abordaremos então a pré-história da violência, examinando quando ela apareceu em nossa linhagem evolutiva, em que medida era comum nos milênios anteriores à história escrita e que tipos de desenvolvimento histórico começaram a reduzi-la.

Darwin nos deu uma teoria para explicar por que os seres vivos têm as características que têm, não apenas fisicamente, mas também no plano das disposições mentais e motivações básicas que impelem seu comportamento. Um século e meio depois da publicação de A Origem das Espécies, a teoria da seleção natural está solidamente comprovada em laboratório e em campo e foi ampliada com ideias de novas áreas da ciência e da matemática, ensejando uma compreensão coerente do mundo vivo. Essas novas áreas incluem a genética, que explica os replicadores que possibilitam a seleção natural, e a teoria dos jogos, que lança luz sobre a sina de agentes que perseguem metas num mundo onde há outros agentes perseguidores de metas.

Por que razão evoluiriam organismos que visam fazer mal a outros organismos? A resposta não é tão direta quanto sugeriria a expressão “sobrevivência dos mais aptos”. Em seu livro O Gene Egoísta, no qual explica a síntese moderna da biologia evolutiva recorrendo à genética e à teoria dos jogos, Richard Dawkins tenta subtrair aos leitores a familiaridade irrefletida com o mundo vivo. Pede-lhes que imaginem os animais como “máquinas de sobrevivência” projetadas pelos genes (as únicas entidades que se propagam religiosamente ao longo de toda a evolução) e que então reflitam sobre como evoluiriam tais máquinas de sobrevivência:

Para uma máquina de sobrevivência, outra máquina de sobrevivência (que não seja seu filho ou parente próximo) é parte do ambiente, como uma rocha, um rio ou uma porção de alimento. É algo que estorva ou algo a ser explorado. Difere de uma rocha ou de um rio em um aspecto importante: ela tende a reagir. Pois também ela é uma máquina que administra seus genes imortais com vistas ao futuro e também ela fará de tudo para preservá-los. A seleção natural favorece os genes que controlam as máquinas de sobrevivência de modo que elas usem o ambiente da melhor forma possível. Isso inclui fazer o melhor uso possível de outras máquinas de sobrevivência, tanto da mesma espécie como de espécies diferentes.

Quem já viu um falcão dilacerar um estorninho, um enxame de insetos torturar um cavalo com suas ferroadas ou o vírus da Aids matar um homem lentamente tem conhecimento, em primeira mão, das maneiras com que as máquinas de sobrevivência exploram impiedosamente outras máquinas de sobrevivência. Em boa parte do mundo vivo, a violência é simplesmente a norma, algo que dispensa maiores explicações. Quando as vítimas pertencem a outra espécie, chamamos os agressores de predadores ou parasitas. Mas elas podem também ser membros da mesma espécie. Infanticídio, fratricídio, canibalismo, estupro e combate letal já foram documentados em muitos tipos de animais.
 
passagem cuidadosamente formulada de Dawkins também explica por que a natureza não consiste em uma grande escaramuça sangrenta. Para começar, os animais são menos inclinados a fazer mal aos parentes próximos, pois qualquer gene que levasse um animal a prejudicar um parente teria uma boa chance de prejudicar uma cópia de si mesmo existente nesse parente, e a seleção natural tenderia a erradicá-lo. Acima de tudo, salienta Dawkins, um outro organismo difere de uma rocha ou de um rio porque tende a reagir. Qualquer organismo que tenha evoluído para ser violento é membro de uma espécie cujos outros membros, em média, evoluíram para ser igualmente violentos. Se ele atacar alguém da própria espécie, o adversário poderá ser igualmente forte e combativo e terá as mesmas armas e defesas. A probabilidade de que, ao atacar um membro da mesma espécie, o atacante sofra danos é uma poderosa pressão seletiva que desfavorece a investida ou o bote indiscriminados. Isso também descarta a metáfora hidráulica da pressão psíquica que se acumula e por fim extravasa, bem como a maioria das teorias populares sobre a violência, tais como a sede de sangue, o desejo de matar, o instinto assassino e outras comichões, impulsos e ânsias destrutivas. Quando uma tendência à violência evolui, ela é sempre estratégica. Os organismos são selecionados para mobilizar a violência somente em circunstâncias nas quais os benefícios esperados superam os custos previstos. Esse discernimento é especialmente válido para as espécies inteligentes, cujo cérebro grande as torna sensíveis à expectativa de custo e benefício em uma situação dada e não apenas à média eventualmente computada ao longo do tempo evolutivo.

A lógica da violência, quando aplicada a membros de uma espécie inteligente em confronto com outros membros dessa espécie, vai nos levar a Hobbes. Numa passagem notável do Leviatã, de 1651, ele não precisou nem de 100 palavras para traçar uma análise dos estímulos à violência que não deixa nada a dever às de hoje:

Assim, na natureza do homem, encontramos três causas principais de contenda. Primeiro, a competição; segundo, a difidência; terceiro, a glória. A primeira leva o homem a invadir pelo ganho; a segunda, pela segurança; a terceira, pela reputação. O primeiro usa a violência para se assenhorear da pessoa de outros homens, de esposas, filhos e rebanhos; o segundo, para defendê-los; o terceiro, por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente e qualquer outro sinal de desapreço, ou à sua pessoa diretamente, ou, por reflexo, a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.

Hobbes considerava a competição uma consequência inevitável do empenho do agente em perseguir seus interesses. Vemos hoje que ela é parte integrante do processo evolutivo.Máquinas de sobrevivência capazes de chutar os competidores para longe de recursos finitos como comida, água e território desejável conseguirão se reproduzir mais do que os concorrentes, deixando o mundo com as máquinas de sobrevivência mais aptas a esse tipo de competição.

Também sabemos hoje por que “esposas” são um dos recursos pelos quais os homens devem competir. Na maioria das espécies animais, a fêmea faz um investimento maior do que o macho na prole. Isso se aplica em especial aos mamíferos, pois a mãe gesta a cria dentro do corpo e depois do parto a amamenta. Um macho pode multiplicar o número de filhos acasalando-se com várias fêmeas – o que privará outros machos de filhos –, enquanto uma fêmea não pode multiplicar o número de filhos acasalando-se com vários machos. Isso faz da capacidade reprodutiva da fêmea um recurso escasso pelo qual competem os machos de muitas espécies, inclusive a humana. Nada disso, a propósito, implica que os homens sejam robôs controlados por seus genes, que eles possam ser moralmente desculpados por estuprar ou lutar, que as mulheres sejam prêmios sexuais passivos, que as pessoas tentem gerar o maior número possível de bebês ou que sejam impermeáveis às influências de sua cultura, para citar alguns dos equívocos comuns a respeito da teoria da seleção sexual.
 
segunda causa de contenda é a difidência, palavra que na época de Hobbes significava sobretudo “medo”, e não “desconfiança”. A segunda causa é consequência da primeira: competição gera medo. Se você tem motivo para suspeitar que seu vizinho está propenso a eliminá-lo da competição, digamos, matando-o, então estará propenso a se proteger eliminando-o primeiro, num ataque preventivo. A tentação pode aparecer, ainda que em condições normais você não seja capaz de matar nem uma mosca – basta não estar disposto a cruzar os braços e se deixar matar. A tragédia é que seu competidor tem todos os motivos para maquinar o mesmo cálculo, ainda que ele próprio seja o tipo de pessoa que não mataria uma mosca. De fato, mesmo se souber que você não partiria para cima dele com intenções agressivas, ele pode legitimamente recear que você esteja tentado a neutralizá-lo por medo de que ele o neutralize primeiro, o que dará a você o incentivo para neutralizá-lo antes, ad infinitum. O cientista político Thomas Schelling apresenta a analogia do homem armado que surpreende em sua casa um assaltante também armado, e cada um deles é tentado a atirar no outro para não ser balea-do primeiro. Esse paradoxo às vezes é chamado de armadilha hobbesiana, ou, na arena das relações internacionais, de dilema da segurança.
De que maneira os agentes inteligentes podem se desvencilhar da armadilha hobbesiana? A forma mais óbvia é uma política de dissuasão: não ataque primeiro, seja forte o bastante para sobreviver a um primeiro ataque e retalie na mesma moeda qualquer agressão.

Uma política de dissuasão digna de crédito pode retirar do competidor o incentivo para invadir pelo ganho, pois o custo imposto pela retaliação anularia para ele o espólio previsto.
E elimina o incentivo para invadir por medo, em virtude da decisão de não invadir primeiro e, acima de tudo, do menor incentivo para ser o primeiro a atacar, visto que a dissuasão reduz a necessi-dade de um ataque preventivo. A chave da política de dissuasão, no entanto, é a credibilidade da ameaça de que haverá retaliação. Se seu adversário pensa que você é vulnerável a ponto de ser aniquilado em um primeiro ataque, não tem por que temer a retaliação. E se pensa que, uma vez atacado, você pode racionalmente se abster de retaliar, pois a essa altura é tarde demais para ter algum benefício com a retaliação, ele poderá explorar essa racionalidade e atacá-lo impunemente. Sua política de dissuasão só merecerá crédito se você se mostrar categórico no compromisso de re-futar a menor suspeita de fraqueza, de vingar todo avanço sobre seu território e de dar o troco a qualquer ofensa. Está explicado, assim, o incentivo para invadir por ninharias: uma palavra, um sorriso ou qualquer outro sinal de desapreço. Hobbes o chamou “glória”; mais comumente, chamam-no “honra”; o termo que o descreve com maior precisão é “credibilidade”.

A política da dissuasão também é conhecida como o equilíbrio do terror e, durante a Guerra Fria, foi chamada de destruição mútua assegurada [mad, na sigla em inglês].
A paz eventualmente prometida por uma política de dissuasão é sempre frágil, pois a dissuasão só reduz a violência mediante a ameaça de violência. Cada lado deve reagir a qualquer sinal não violento de desrespeito com uma violenta demonstração de vigor; em consequência, um ato de violência pode levar a outro, num ciclo interminável de retaliação. Uma importante característica da natureza humana – o viés do interesse próprio – pode levar cada lado a acreditar que sua própria violência foi um ato de retaliação justificada, enquanto o ato do outro foi uma agressão imotivada.

A análise de Hobbes diz respeito à vida em estado de anarquia. O título de sua obra-prima identificou um modo de escapar dela: o Leviatã, uma monarquia ou outra autoridade governamental que incorpora a vontade do povo e tem o monopólio do uso da força. Aplicando penalidades aos agressores, o Leviatã pode eliminar o incentivo para a agressão, o que, por sua vez, desativa a ansiedade geral sobre ataques preventivos e a necessidade de que todos mantenham o dedo no gatilho para retaliar à menor provocação e provar que são determinados. E, sendo o Leviatã uma terceira parte desinteressada, não se deixa sugestionar pelo chauvinismo que leva cada lado a pensar que o oponente tem um coração das trevas, enquanto o seu próprio é puro como um cristal.

A lógica do Leviatã pode ser resumida com um triângulo. Em cada ato de violência há três partes interessadas: o agressor, a vítima e um observador. Cada um tem um motivo para a violência: o agressor, predar a vítima; a vítima, retaliar; o observador, minimizar os danos colaterais da luta dos dois. A violência entre os combatentes pode ser chamada guerra; a violência do observador contra os combatentes pode ser chamada lei. A teoria do Leviatã, em suma, diz que a lei é melhor do que a guerra. A teoria de Hobbes delineia um prognóstico verificável sobre a história da violência. O
 Leviatã fez sua primeira entrada num ato tardio da encenação humana. Os arqueólogos nos dizem que os seres humanos viveram em estado de anarquia até o surgimento da civilização, há cerca de 5 mil anos, quando agricultores sedentários se aglutinaram pela primeira vez em cidades e Estados e criaram os primeiros governos. Se a teoria de Hobbes for correta, essa transição deve também ter prenunciado o primeiro grande declínio histórico da violência. Antes do advento da civilização, quando os homens viviam sem “um poder comum capaz de manter a todos em temor reverente”, a vida devia ser mais sórdida, mais brutal e mais curta do que quando a paz lhes foi imposta por autoridades armadas, desenvolvimento que chamarei de “processo de pacificação”. Hobbes afirma que “povos selvagens em muitos lugares da América” viviam em estado de anarquia violenta, mas não dá nenhuma especificação sobre o que tinha em mente.

Nesse vácuo de dados, qualquer um poderia ter vez nas especulações sobre os povos primitivos, e não demorou a que uma teoria oposta viesse à tona. O contrário de Hobbes foi o filósofo nascido na Suíça Jean-Jacques Rousseau [1712–78], que era da seguinte opinião:
[...]nada é mais dócil do que [o homem]em seu estado primitivo. []O exemplo dos selvagens [...]parece confirmar que o gênero humano era feito para nele permanecer sempre, []e que todos os progressos ulteriores foram outros tantos passos []em direção à decrepitude da espécie.
 
mbora as filosofias de Hobbes e Rousseau sejam muito mais refinadas do que “vida sórdida, brutal e curta” versus“o bom selvagem”, seus estereótipos concorrentes da vida em estado de natureza alimentaram uma controvérsia que perdura até os nossos dias. Em Tábula Rasa[2002], examinei como a questão acumulou uma pesada bagagem emocional, moral e política. Na segunda metade do século xx, a romântica teoria de Rousseau se tornou a doutrina politicamente correta da natureza humana, tanto como reação a doutrinas racistas anteriores sobre povos “primitivos” como pela convicção de que se tratava de uma visão mais elevada da condição humana. Muitos antropólogos acreditam que, se Hobbes estivesse certo, a guerra seria inevitável ou mesmo desejável; logo, qualquer um que seja a favor da paz deve insistir que Hobbes está errado. Esses “antropólogos da paz” (que na verdade são acadêmicos bem agressivos – o etologista Johan van der Dennen os chama de “máfia da paz e harmonia”) sustentam que os humanos e outros animais têm inibições severas quanto a matar os da própria espécie, que a guerra é uma invenção recente e que as lutasentre povos nativos foram ritualísticas e inofensivas até eles encontrarem o colonizador europeu.

A meu ver, a ideia de que as teorias biológicas da violência são fatalistas e de que as teorias românticas são otimistas põe as coisas de cabeça para baixo, mas não é esse o meu assunto aqui. Quando se trata de violência em povos antes do advento do Estado, Hobbes e Rousseau estão falando do alto de suas respectivas poltronas: nenhum deles conhecia coisa alguma sobre a vida antes da civilização. Hoje podemos fazer melhor. Estamos examinando aqui os fatos sobre a violência nos primeiros estágios da carreira humana. A história começa antes de sermos humanos, e analisaremos a agressão em nossos parentes primatas para ver o que ela revela sobre o surgimento da violência em nossa linhagem evolutiva.
 
partir de que ponto temos como rastrear a história da violência? Embora os ancestrais primatas da linhagem humana tenham sido extintos há muito tempo, eles nos deixaram no mínimo um tipo de evidência de como podem ter sido: os chimpanzés, seus outros descendentes. Não evoluímos de chimpanzés, é claro, e, como veremos, é uma questão em aberto se os chimpanzés preservaram ou não as características do nosso ancestral comum ou se enveredaram por uma direção exclusiva deles. Seja como for, a agressão entre os chimpanzés contém uma lição para nós, pois mostra como a violência pode evoluir numa espécie primata com a qual compartilhamos certas características. E põe à prova o prognóstico evolutivo de que as tendências violentas não são hidráulicas, e sim estratégicas, mobilizadas apenas em circunstâncias nas quais os ganhos potenciais são altos e os riscos são baixos.

Os chimpanzés comuns vivem em comunidades de até 150 indivíduos que ocupam um território separado. Enquanto vagueiam em busca de frutas e nozes, que se distribuem de maneira não uniforme pela floresta, eles com frequência se dividem e se aglutinam em grupos menores de um a quinze indivíduos. Se um grupo encontra outro grupo de uma comunidade diferente na fronteira dos territórios, a interação é sempre hostil. Quando os bandos estão em equilíbrio de forças, disputam a fronteira em uma batalha ruidosa. Os dois lados dão gritos curtos e repetidos ou emitem sons graves, sacodem galhos, atiram objetos e arremetem uns contra os outros por meia hora ou mais, até que um lado, geralmente o menos numeroso, bate em retirada.

Essas batalhas exemplificam as demonstrações de agressividade que são comuns entre animais. Supunha-se antes que fossem rituais para decidir contendas sem derramamento de sangue, pelo bem da espécie, mas hoje elas são entendidas como exibições de força e determinação que permitem ao lado mais fraco ceder, nos casos em que o resultado da luta é previsível e insistir nela significaria apenas risco de dano para ambas as partes. Quando dois animais estão em condições de igualdade, a exibição de força às vezes vai num crescendo até o combate sério, um deles ou ambos terminando feridos ou mortos. As batalhas entre grupos de chimpanzés, contudo, não descambam para a luta séria, e antes os antropólogos acreditavam que a espécie era essencialmente pacífica.
 
ane Goodall, a primatóloga que pela primeira vez observou chimpanzés na natureza por longos períodos, acabou fazendo uma descoberta estarrecedora. Quando um grupo de chimpanzés machos encontra um grupo menor ou um indivíduo solitário de outra comunidade, eles não gritam nem se eriçam, mas tiram vantagem de estar em maior número. Se é uma fêmea adolescente sexualmente receptiva, podem catar piolhos entre os pelos da estranha e tentar acasalar. Se ela carrega um filhote, eles em geral a atacam e depois matam e comem o bebê. E, se encontram um macho solitário, ou isolado de um grupo pequeno, perseguem-no com selvageria assassina. Dois atacantes imobilizam a vítima e os demais o espancam, arrancam-lhe os dedos e a genitália a mordidas, dilaceram-lhe a carne, torcem seus membros, bebem seu sangue ou lhe arrancam a traqueia. Os chimpanzés de determinada comunidade pegaram todos os machos de uma comunidade vizinha e os mataram um por um, evento que, se ocorresse entre humanos, chamaríamos de genocídio. Muitos ataques não são desencadeados por encontros fortuitos; resultam de patrulhamentos de fronteira durante os quais um grupo de machosfaz buscas sorrateiras e transforma em alvo todo macho solitário que localiza. Mata-se também dentro da própria comunidade. Uma gangue de machos pode matar um rival, e uma fêmea forte, ajudada por um macho ou outra fêmea, pode matar a cria de uma fêmea mais fraca.

Quando Goodall apresentou o primeiro relato dessas matanças, outros cientistas conjecturaram se não seriam explosões anômalas ou sintomas de patologia, ou se não decorreriam do fato de os primatólogos abastecerem os chimpanzés com comida para facilitar a observação. Três décadas depois, não resta praticamente nenhuma dúvida de que a agressão letal integra o repertório de comportamentos normais dos chimpanzés. Os primatólogos observaram ou inferiram o extermínio de quase cinquenta indivíduos em ataques intercomunitários e de mais de 25 em ataques dentro da mesma comunidade. Os relatos provêm de no mínimo nove comunidades, incluindo algumas que nunca haviam recebido provisões. Em certas comunidades, mais de um terço dos machos morre vitimado por violência.

O chimpancídio tem fundamento darwiniano? O primatólogo Richard Wrangham, ex-aluno de Goodall, testou várias hipóteses com os numerosos dados coligidos sobre a demografia e a ecologia dos chimpanzés. Conseguiu documentar uma vantagem darwiniana de peso e outra vantagem menor. Quando os chimpanzés eliminam machos rivais e a respectiva prole, expandem seu território, seja transferindo-se para lá imediatamente, seja vencendo batalhas subsequentes com a ajuda da vantagem numérica recém-fortalecida. Isso lhes permite monopolizar o acesso ao alimento no território para si mesmos, suas crias e as fêmeas com as quais acasalam, o que resulta, por sua vez, no aumento da taxa de natalidade entre as fêmeas. Às vezes a comunidade também absorve as fêmeas do grupo derrotado, proporcionando aos machos uma segunda vantagem reprodutiva. Não é que os chimpanzés lutem diretamente por comida ou por fêmeas. Eles só se dispõem a dominar o território e a eliminar os rivais se puderem fazê-lo com risco mínimo para si mesmos. Os benefícios evolutivos ocorrem indiretamente e em longo prazo.

Quanto aos riscos, os chimpanzés os minimizam provocando brigas desiguais, em que superam o número de vítimas na proporção de pelo menos três para um. O padrão forrageiro dos chimpanzés costuma mandar a infeliz vítima direto para suas garras porque as árvores frutíferas se distribuem por trechos descontínuos na floresta. Chimpanzés famintos veem-se obrigados a procurar comida em pequenos grupos ou individualmente, e às vezes se aventuram em terras de ninguém à cata do jantar.

O que isso tem a ver com a violência em seres humanos? A partir daí, levanta-se a possibilidade de que a linhagem humana tenha praticado assaltos letais desde a época de suas raízes comuns com os chimpanzés, por volta de 6 milhões de anos atrás. Existe, contudo, uma possibilidade alternativa. O ancestral compartilhado pelos humanos e pelos chimpanzés comuns (Pan troglodytes) legou ao mundo uma terceira espécie – o bonobo ou chimpanzé-pigmeu (Pan paniscus) –, que se separou de seus primos comuns há cerca de 2 milhões de anos. Nosso parentesco com os bonobos é tão próximo quanto com os chimpanzés comuns, e os bonobos nunca praticam ataques letais. Na verdade, a diferença entre bonobos e chimpanzés comuns é um dos fatos mais conhecidos da primatologia popular. Os bonobos ganharam fama como pacíficos, matriarcais, concupiscentes e herbívoros “chimpanzés hippies”. Deram nome a um restaurante vegetariano em Nova York, inspiraram a sexóloga Susan Block a criar “o caminho da paz dos bonobos através do prazer” e, se dependesse de Maureen Dowd, colunista do New York Times, seriam um modelo para os homens de hoje.
 
primatólogo Frans de Waal salienta que, em teoria, o ancestral em comum de seres humanos, chimpanzés e bonobos possivelmente se assemelhava aos bonobos, e não aos chimpanzés. Nesse caso, a violência entre coalizões de machos teria raízes menos profundas na história evoluti-va humana. Os chimpanzés comuns e os humanos teriam desenvolvido independentemente os ataques letais, e a prática humana do ataque pode ter se desenvolvido historicamente em culturas específicas, e não no plano da evolução da espécie. Nesse caso, os humanos não teriam predisposições inatas à violência física e não precisariam de um Leviatã ou de qualquer outra instituição para se manter

Há dois problemas na ideia de que o homem evoluiu de um ancestral pacífico semelhante ao bonobo. Primeiro, é fácil se deixar empolgar por essa história de um primata hippie. Os bonobos são uma espécie ameaçada que vive em florestas inacessíveis, em regiões perigosas do Congo, e muito do que sabemos sobre eles vem da observação de pequenos grupos em cativeiro, compostos de adolescentes ou jovens adultos bem nutridos. Muitos primatólogos suspeitam que estudos sistemáticos de grupos de bonobos mais velhos, mais famintos, mais populosos e mais livres pintariam um quadro bem mais sinistro. Na selva, descobriu-se, os bonobos caçam, confrontam-se belicosamente e ferem uns aos outros em lutas às vezes fatais. Assim, embora os bonobos sejam inquestionavelmente menos agressivos do que os chimpanzés comuns – nunca fazem incursões de ataque e suas comunidades podem se misturar pacificamente –, 100% pacíficos eles com certeza não são.

O segundo e principal problema é que, muito provavelmente, o ancestral comum das duas espécies de chimpanzé e do homem era mais parecido com um chimpanzé do que com um bonobo. Os bonobos são primatas muito estranhos, não só no comportamento, mas também na anatomia. A cabeça pequena e de formato infantil, o corpo mais leve, as diferenças menos acentuadas entre os sexos e outras características juvenis os distinguem não só dos chimpanzés comuns, mas também dos outros grandes primatas (gorilas e orangotangos), assim como dos fósseis de australopitecos, que foram ancestrais dos humanos. Encaixada na grande árvore filogenética dos primatas, a anatomia peculiar dos bonobos sugere que eles foram afastados do esboço genérico dos grandes primatas pela neotenia, processo que ressintoniza o programa de crescimento de um animal para preservar certas características juvenis na fase adulta (no caso dos bonobos, características do crânio e do cérebro).

A neotenia costuma ocorrer em espécies que foram domesticadas (como no caso do cão, que se desviou do lobo) e é um caminho pelo qual a seleção pode tornar os animais menos agressivos. Wrangham afirma que o principal motor na evolução dos bonobos foi a seleção para menor agressividade nos machos, talvez porque os bonobos busquem alimento sempre em grandes grupos, sem indivíduos solitários vulneráveis, não se criando, assim, oportunidades para que a agressão física seja compensadora. Essas considerações sugerem que os bonobos desafinam no coro dos grandes primatas e que nós descendemos de um animal que se assemelhava mais com o chimpanzé comum.

Mesmo se chimpanzés e humanos tiverem descoberto independentemente a violência grupal, a coincidência seria informativa. Sugeriria que as incursões letais podem ser evolucionariamente vantajosas numa espécie inteligente que se divide em grupos de vários tamanhos e na qual machos aparentados formam coalizões e são capazes de avaliar a força relativa uns dos outros. (Quando examinamos a violência em seres humanos, descobrimos alguns paralelos inquietantemente próximos.)
 
eria ótimo se a lacuna entre o ancestral comum e os humanos modernos pudesse ser preenchida pelo registro fóssil. Mas os ancestrais dos chimpanzés não deixaram fósseis, e não dispomos de fósseis e artefatos de hominídeos em quantidade suficiente para fornecer evidências diretas de agressão, como armas ou marcas de ferimentos.
Alguns paleoantropólogos buscam sinais de temperamento violento em espécies fósseis medindo o tamanho dos dentes caninos nos machos (pois encontramos caninos pontiagudos em espécies agressivas) e verificando as diferenças de tamanho entre machos e fêmeas (pois nas espécies políginas os machos tendem a ser maiores, para lutar melhor contra outros machos).

Infelizmente as mandíbulas pequenas dos hominídeos, ao contrário do focinho dos outros primatas, não se abrem o suficiente para que caninos grandes se mostrem práticos, independentemente de essas criaturas terem sido agressivas ou pacíficas. E, a menos que uma espécie tenha tido a consideração de nos deixar um bom número de esqueletos completos, é difícil determinar com segurança o sexo deles e comparar o tamanho de machos e fêmeas. (Por essas razões, muitos antropólogos veem com ceticismo a recente afirmação de que o Ardipithecus ramidus, uma espécie de 4,4 milhões de anos que é provavelmente ancestral do Homo, tinha caninos igualmente pequenos em machos e fêmeas e que, portanto, era uma espécie monógama e pacífica.)

Os fósseis mais recentes e abundantes de Homomostram que os machos foram maiores do que as fêmeas por no mínimo 2 milhões de anos e numa proporção não inferior à encontrada nos humanos modernos. Isso reforça a suspeita de que a competição violenta entre homens tem uma longa história em nossa linhagem evolutiva.

13 de fevereiro de 2014
STEVEN PINKER

NATUREZA FABRICADA



A tentativa de reproduzir o mundo anterior aos seres humanos
 
Flevoland, situada mais ou menos no centro dos Países Baixos, a meia hora de Amsterdã, é a mais nova província do país, do ponto de vista tanto administrativo quanto geográfico. Na maior parte dos últimos milênios, as terras de Flevoland se encontravam no fundo de uma baía do mar do Norte. Na década de 30, uma gigantesca rede de diques transformou a enseada em um lago de água doce, e na década de 50 um projeto de drenagem quase igualmente gigantesco permitiu que as terras de Flevoland emergissem do lodo do antigo leito do oceano. O brasão das armas da província, criado quando esta foi incorporada ao país, na década de 80, ostenta uma criatura com cabeça de leão e cauda de sereia.

Algumas das terras mais férteis da Europa estão em Flevoland; seus campos compridos e estreitos foram semeados de batata, beterraba e cevada. De cada lado da província fica uma cidade construída a partir do zero: Almere a oeste e Lelystad a leste. Entre as duas, encontra-se uma extensão de terras selvagens que também foi construída, como num Gênesis, a partir do barro.

Conhecida como Oostvaardersplassen, um nome quase impronunciável para os não holandeses, essa reserva ocupa cerca de 6 mil hectares [o equivalente a duas Florianópolis] quase perfeitamente planos à beira da parte da enseada transformada em lago. A área se destinava originalmente à indústria; todavia, enquanto ainda não estava totalmente convertida em terras secas, um grupo de biólogos convenceu o governo holandês de que tinha uma ideia melhor. As terras mais novas da Europa podiam ser usadas para recriar uma paisagem paleolítica. E os biólogos se dedicaram a povoar a reserva de Oostvaardersplassen com os tipos de animais que teriam habitado a área na época pré-histórica – se àquela altura ela não se encontrasse debaixo d’água.

Em muitos casos esses animais estão extintos, de maneira que foi necessário recorrer à melhor opção disponível. Por exemplo, em vez do auroque, grande bovino hoje desaparecido, foram trazidos bois da raça Heck, variedade de gado desenvolvida no período nazista. (Mais adiante voltaremos aos nazistas.) O gado pastou e multiplicou-se. Assim como o cervo-vermelho, trazido da Escócia, e os cavalos, importados da Polônia, além das raposas, dos gansos e das garças. Na verdade, os mamíferos proliferaram a ponto de constituir rebanhos que poderiam ser comparados, com alguma boa vontade, às imensas manadas migratórias da África; a revista alemã Der Spiegel apelidou Oostvaardersplassen de “Serengeti protegido por diques”, referindo-se à reserva entre a Tanzânia e o Quênia que abriga grandes mamíferos selvagens. Os visitantes de hoje pagam até 30 euros por cabeça para participar de tourspelo parque que em tudo lembram safáris, especialmente populares durante o outono, a época da reprodução.

Tamanho é o sucesso da experiência holandesa – seja ela o que for – que um novo movimento surgiu inspirado por ela. Batizado de Rewilding Europe (algo como “renaturalizando” a Europa), o movimento vira do avesso as noções anteriores de ambiente natural. Talvez seja verdade que a única coisa que se pode realmente fazer com os ambientes autenticamente naturais seja destruí-los, mas um novo “ambiente selvagem”, que os holandeses chamam de “nova natureza”, também pode ser criado. A cada ano, dezenas de milhares de hectares de terras cultiváveis da Europa são retiradas da produção. Por que não usar essas terras para criar uma “nova natureza” que substitua a que foi perdida? A mesma ideia básica, é claro, poderia ser aplicada fora da Europa – já foi proposto, por exemplo, que certas extensões despovoadas do Meio-Oeste norte-americano também fossem usadas em projetos de renaturalização.
 
isitei a reserva de Oostvaardersplassen durante um período de dias muito azuis no início do outono. Na ocasião, duas equipes de cinema, uma holandesa e outra francesa, também se encontravam lá. A equipe francesa, entre cujos créditos figura o sucesso internacional Migração Alada, percorria a reserva cogitando de seu uso futuro num filme sobre a história da Europa vista pelos olhos de outras espécies. A equipe holandesa estava terminando um documentário de longa-metragem. Numa tarde, todos entramos em nossas camionetes e fomos até o centro do parque.

Um vento forte soprava, como quase sempre ocorre nas proximidades do mar do Norte. Passamos por uma área pantanosa coberta de juncos, que balançavam ao vento. Patos nadavam num laguinho. Mais adiante, onde a terra era mais seca, os juncos davam lugar à pastagem. Passamos por um rebanho de cervos-vermelhos e alguns candidatos a auroques, além da carcaça de um cervo que fora quase totalmente reduzida a ossos por raposas e corvos. (A equipe holandesa tinha filmado a ação dos carniceiros em time-lapse, técnica cinematográfica de capturar uma imagem em intervalos longos e depois exibi-la como se fosse em velocidade acelerada).

Finalmente, chegamos a um rebanho de cerca de mil cavalos selvagens – ou, pelo menos, não domesticados. Eles relinchavam e sacudiam as cabeças. Tinham uma pelagem quase uniforme, cor de camurça, e o vento agitava suas crinas, de um castanho-escuro. Todos descemos das camionetes. Os cavalos não nos deram importância, embora tenhamos chegado a poucos metros de distância.

Ah, c’est joli, ça!”, exclamavam os franceses. Um bando de gansos-de-cara-branca ou bernacas, com sua plumagem preta e branca, ergueu-se no ar e então, no momento seguinte, um trem amarelo passou com estrépito pela área, transportando passageiros de Almere para Lelystad ou, talvez, vice-versa. Alguns membros da equipe de filmagem francesa tinham trazido câmeras de vídeo. Enquanto filmavam uma panorâmica dos cavalos – na beira do rebanho, uma égua acariciava com o focinho um potro que não podia ter mais de dois ou três dias de vida –, eu me perguntei o que iriam fazer com as linhas de transmissão de alta voltagem que se viam ao fundo. E me ocorreu que, como tantos outros projetos pós-modernos, a reserva de Oostvaardersplassen era ligeiramente ridícula. Embora também seja, devo admitir, uma inspiração.
 
e é possível apontar um responsável pela existência de Oostvaardersplassen, essa pessoa é o ecologista Frans Vera. Aos 63 anos, ostenta cabelos grisalhos, barba branca e uma disposição alegre e combativa. Passou a maior parte de sua vida adulta trabalhando para vários órgãos do governo holandês, e hoje trabalha para uma fundação particular, da qual, que eu saiba, é o único funcionário. Frans Vera pegou-me um dia no meu hotel em Lelystad e me levou de carro até a sede administrativa da reserva, onde tomamos café numa sala em cuja decoração se destaca a cabeça empalhada de um imenso touro preto da raça Heck.

Frans Vera explicou-me que seu interesse por Oostvaardersplassen começou no final da década de 70. Àquela altura, tinha acabado de se formar, em Amsterdã, e estava desempregado. Leu um artigo sobre alguns gansos-bravos que tinham aparecido na área conquistada ao mar, na época uma terra de ninguém ainda alagada. Esses gansos mantinham a vegetação baixa devorando suas pontas, preservando desse modo o hábitat pantanoso. Frans Vera era um entusiasta da observação de aves, e essa história o estimulou. Logo em seguida, escreveu um artigo, afirmando também que aquela área deveria ser transformada numa reserva natural. Pouco depois, foi contratado pelo órgão de controle florestal do governo holandês.

Nos últimos anos da década de 70, a concepção predominante nos Países Baixos era – e, até certo ponto, ainda é – de que a natureza é uma coisa que se administra, como uma propriedade rural. De acordo com essa ideia, uma reserva precisa ser plantada, podada e ceifada, e, quanto maior a reserva, maior será a intervenção necessária. Frans Vera se irritava com essa visão. O problema, concluiu, era que os maiores herbívoros da Europa tinham sido caçados até a extinção. Caso pudessem ser reintroduzidos no ambiente, a natureza cuidaria de si mesma. A teoria, vinda de um funcionário público subalterno, não fez muito sucesso.

“Quando você se limita a um paradigma já aceito, não enfrenta resistência alguma”, disse-me ele. “Mas cuidado quando você começa a questionar o paradigma. Aí começa uma discussão que é  25% sobre os fatos e 75% psicológica. A resposta que eu mais ouvia era: ‘Quem você acha que é?’” Sem se deixar abalar, Frans Vera continuou a insistir. Tinha aliados em vários ministérios, e um deles conseguiu-lhe o dinheiro para a compra de algumas cabeças de gado da raça Heck. Em 1983, enquanto o futuro de Oostvaardersplassen ainda era discutido, Frans Vera comprou os animais na Alemanha, embora ainda não tivesse permissão das autoridades para soltá-los.

“Comprei o gado e vim para cá com os caminhões”, lembra ele, risonho. “E eles ficaram furiosos!” A primeira remessa de bois não pôde ser desembarcada na área, mas uma segunda, adquirida poucos meses depois, acabou sendo admitida. No ano seguinte, Frans Vera comprou quarenta cavalos Konik na Polônia. Acredita-se que os cavalos da raça Konik são descendentes dos tarpans, uma das últimas subespécies de cavalos realmente selvagens do mundo, que sobreviveu na Europa Oriental até o século XIX. (Praticamente todos os cavalos hoje chamados de “selvagens” são, na verdade, descendentes de cavalos domesticados que, em algum momento, soltaram-se ou foram soltos.) Os cervos-vermelhos, parentes próximos dos alces norte-americanos, foram introduzidos na área durante a década de 90.

Enquanto isso, outros animais se estabeleciam em Oostvaardersplassen por conta própria. Chegaram raposas, assim como os ratos-almiscarados, que na Europa são vistos como uma espécie invasora. Surgiram abutres e açores (um tipo de falcão), garças-cinzentas, martins-pescadores e francelhos (outro tipo de falcão, de pequeno porte). Um casal de imensas águias-rabalvas se instalou na área e construiu seu ninho numa árvore de porte incrivelmente pequeno. Em 2005, um raro abutre-negro foi visto na reserva, mas ao cabo de alguns meses de residência acabou um dia pousando nos trilhos e foi atropelado por um trem. (A linha férrea atravessa a reserva bordejando seu limite sul.)

O sonho de Frans Vera é que um dia a reserva de Oostvaardersplassen vá estar ligada a outras reservas naturais nos Países Baixos – um plano que já obteve fundos parciais, mas nunca todo ofinanciamento necessário – e que isso, por sua vez, venha a permitir que atraia lobos. Faz mais de um século que os lobos foram extirpados da maior parte da Europa Ocidental, mas, devido a medidas rigorosas de proteção adotadas nas décadas mais recentes, esses animais vêm ressurgindo em países como a Alemanha e a França. (Duas alcateias, com cerca de dez lobos cada, vivem hoje num raio de 60 quilômetros em torno de Berlim.) No ano passado, um lobo que se acredita ter sido o primeiro avistado na Holanda desde a década de 1860 foi localizado cerca de 100 quilômetros a sudeste de Oostvaardersplassen, na cidade de Duiven.
“Isto deve ser inimaginável para os americanos – lobos na Holanda”, declarou Frans Vera. “Mas é o futuro.”
 
epois que terminamos nosso café, entramos numa camionete e atravessamos os portões da reserva. O gado, os cavalos e os cervos consumiram o alimento disponível em toda a área com tamanha eficiência que mal se via nela um arbusto sequer – só uma extensão muito plana de relva tosada bem rente. Passamos por alguns bandos de cervos e por uma raposa que nos fitou de volta com olhos claros e reluzentes. Frans Vera parou a camionete junto a um mirante sobre estacas. Subimos por uma escada estreita. “Isto aqui é uma janela que se abre para os Países Baixos, tal como eram milhares de anos atrás”, disse ele, indicando com um gesto a pradaria abaixo de nós.

Um corolário da teoria de Frans Vera sobre os grandes herbívoros é uma segunda hipótese, que ele defende com vigor ainda maior que a primeira, se é que isso é possível. Entre os ecologistas, a visão dominante da Europa em seu estado natural, ou seja, pré-agrário, é de que era coberta por densas florestas. (Os últimos trechos de floresta antiga do continente podem ser encontrados na fronteira entre a Polônia e Belarus, na floresta de Białowieża, que o escritor Alan Weisman descreve como uma “relíquia do que outrora se estendia a leste até a Sibéria, e a oeste até a Irlanda”.) Frans Vera afirma que, mesmo antes que os europeus descobrissem a agricultura, o continente tinha uma paisagem mais parecida com a de um parque, com grandes extensões de pradarias. E era mantido assim, insiste ele, por imensas manadas de herbívoros – auroques, cervos-vermelhos, tarpans e bisões-europeus. (Esse bisão foi caçado até a extinção quase total ao fim do século XIX.)

Frans Vera defende seus argumentos num tratado denso, de 500 páginas, que atraiu a atenção, nem sempre favorável, dos naturalistas europeus. Um professor de botânica do Trinity College de Dublin, Fraser Mitchell, escreveu que a análise de amostras antigas de pólen “nos obriga a rejeitar a hipótese de Vera”. Este, por sua vez, refuta a rejeição, afirmando que, precisamente por comerem tanta relva, os auroques e bisões, animais que vivem em movimento, distorceram os depósitos de pólen. “Este é um debate científico em andamento”, declarou ele.

Como o resto de Flevoland, Oostvaar-dersplassen encontra-se a 4 metros e meio abaixo do nível do mar, e só não sofre a invasão das águas graças a uma série de grossas barragens de terra. Em consequência disso, quando você anda no parque, o lago, conhecido como Markermeer, fica num nível mais alto, o que produz a desconcertante sensação de um mundo de cabeça para baixo. Com tempo bom, o Markermeer se enche de barcos a vela, e estes parecem pairar acima do horizonte, como zepelins.

“O que vemos aqui é que, ao contrário do que pensam muitos conservacionistas – para os quais o que se perdeu está perdido para sempre –, é possível reunir as condições para tornar a desenvolver o que existia”, disse Frans Vera. “E esta é a prova definitiva. Nenhuma ave deixa de fazer seu ninho na área por pensar que ela não é natural – ‘afinal, estamos a 4 metros e meio abaixo do nível do mar, e nunca fizemos nada parecido’.”

Continuamos o passeio e paramos para contemplar o ninho construído pelas águias-rabalvas, outro animal que escapou por pouco da extinção. Essas águias apareceram em Oostvaarders-plassen em 2006, e foi o primeiro casal a se reproduzir nos Países Baixos desde a Idade Média. Seu ninho – vazio por ocasião da minha visita – era uma estrutura extraordinária, construída com gravetos e quase do tamanho de uma poltrona. Parecia ameaçar de desabamento a árvore mirrada em que se empoleirava. Frans Vera ficou especialmente feliz com a presença das águias, pois vários ornitólogos lhe disseram que essas aves só faziam ninhos em árvores muito altas e maduras, o que não existe na reserva de Oostvaardersplassen.
“Muitos supostos especialistas afirmaram que isso seria impossível”, disse ele. “Mas as águias foram de outra opinião.”
 
acesso de seres humanos a Oost-va-ardersplassen é estritamente con-trolado, e naquela manhã não havia equipes de filmagem nem excursões de turistas, de maneira que Frans Vera, eu e os animais éramos praticamente os únicos ocupantes de toda a área. O silêncio só era interrompido pelo grasnar dos gansos e o barulho de algum trem ocasional. Seguimos para oeste, contornando um bando de cervos-vermelhos. Um cavalo morto estava estendido no meio da manada. Seu peito estava inchado, e havia um grande buraco negro no lugar onde antes ficava seu ânus. Frans Vera especulou que teria sido aberto pelas raposas, tentando acesso às entranhas do cavalo.

Espera-se que os animais de Oostvaardersplassen, a exemplo dos animais genuinamente silvestres, sejam capazes de se sustentar por conta própria. Não são alimentados ou vacinados, nem sua reprodução sofre qualquer interferência. Também como os animais silvestres, muitas vezes morrem por escassez de recursos; para os grandes herbívoros da reserva, a taxa de mortalidade pode se aproximar de 40% ao ano. Do ponto de vista das relações públicas, este é de longe o aspecto mais polêmico do plano de Frans Vera. Quando o clima não ajuda, a fome se espalha pela reserva, o que proporciona imagens terríveis para a tevê holandesa. Muitas vezes, animais agonizantes são mostrados aglomerando-se junto às cercas da reserva de Oostvaardersplassen, cena que invariavelmente leva a comparações com o Holocausto.

“Não se pode falar de nada sem que a questão da Segunda Guerra Mundial venha à tona”, disse-me Frans Vera. “É uma coisa revoltante.” No outono de 2005, a controvérsia chegou a tal ponto que o governo holandês criou uma comissão – a Comissão Internacional para o Manejo de Grandes Herbívoros em Oostvaardersplassen, ou ICMO – para examinar a questão. A ICMO recomendou uma política de “seleção reativa”, segundo a qual os animais seriam monitorados ao longo do inverno, sacrificando-se a tiros os que parecessem fracos demais para sobreviver até a primavera.

Michael Coughenour, pesquisador no Laboratório de Ecologia de Recursos Naturais da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, foi membro da icmo. Contou-me que, embora fosse difícil comparar as taxas de mortalidade de Oost-vaardersplassen com as de um lugar como Serengeti, “as mortandades em invernos rigorosos são uma coisa natural”.
“Não vi nada que me parecesse muito errado”, prosseguiu ele, referindo-se a uma visita que os membros da comissão fizeram a Oostvaardersplassen. “Acho que é uma ótima experiência, deixar a coisa correr e ver no que dá.”

Muito embora as recomendações da ICMO tenham sido adotadas, muitos críticos não ficaram satisfeitos e, em 2006, uma associação holandesa de defesa dos animais processou a administração da reserva pelo que definiu como “maus-tratos contínuos”. O grupo perdeu a causa, apelou e tornou a perder. Em seguida, no inverno de 2010, especialmente frio no norte da Europa, um programa noticioso holandês exibiu um segmento sobre a reserva de Oost-vaardersplassen em que um cervo magro e extenuado aparecia caindo num laguinho meio congelado e morren-do afogado. A resposta do público foi indignada, precipitando um debate “emergencial” no Parlamento.

“É uma ilusão acharmos que podemos voltar aos tempos primordiais, vestindo peles de urso e navegando em troncos escavados”, disse o deputado que conduziu o debate, Henk Jan Ormel. “O mundo de hoje é muito diferente, e não devíamos deixar os animais da reserva de Oostvaardersplassen pagarem o preço dessa diferença.”

“Tornou-se uma questão política”, disse-me Sip van Wieren, professor deecologia na Universidade de Wageningen. “E muito política.” Uma segunda ICMO foi formada, e recomendou uma política de “seleção reativa precoce”, segundo a qual os animais cuja sobrevivência ao inverno é considerada improvável devem ser sacrificados a tiros ainda no outono. Os critérios usados pelos guardas de Oostvaardersplassen para calcular em novembro quais animais estarão morrendo de fome em fevereiro permanecem um tanto vagos.

Quando visitei a reserva, em setembro, o número de herbívoros do parque encontrava-se no pico anual, com mais de 3 mil cervos, mil cavalos e 300 cabeças de gado da raça Heck. Com o passar do tempo, espera-se, as taxas de nascimento em Oostvaardersplassen irão declinar, e a população atingirá algum tipo de equilíbrio; enquanto isso, os abates continuam. Frans Vera e eu nos aproximamos de um bando de bois que tomavam sol perto de uma árvore morta. Os animais nos encararam com alguma hostilidade em seus olhos muito negros.
Os adultos tinham uma aparência assustadoramente robusta, mas alguns dos bezerros pareciam um tanto trêmulos; dali a poucos meses, calculei, estariam provavelmente reduzidos a carcaças. Frans Vera me disse que ele considerava a “seleção reativa precoce” um arranjo cujos únicos beneficiários de verdade eram os seres humanos; do ponto de vista dos ungulados, acha ele, morrer de fome é um fim muito tranquilo.
“A polêmica só diz respeito à aceitação das pessoas”, disse ele, “e para mim não tem nada a ver com o sofrimento dos animais.”
 
xiste hoje mais de 1,5 bilhão de cabeças de gado no mundo, e acredita-se que todos esses animais sejam descendentes do auroque – o Bos primigenius –, que no passado se espalhava por toda a Europa, boa parte da Ásia e partes do Oriente Médio. Os auroques eram criaturas consideravelmente mais impressionantes que o gado domesticado. Júlio César os descreveu como “um pouco menores que o elefante no tamanho”, com uma força e uma velocidade “descomunais”. (É improvável que algum dia tenha de fato visto um desses animais.) Estimativas mais recentes sugerem que os machos mediriam em torno de 1,80 metro na altura do pescoço; as fêmeas, cerca de 1,50 metro.
Na época romana, os seres humanos tinham reduzido a tal ponto o número existente de auroques que os animais já estavam ausentes da maior parte de seu hábitat anterior.

No início do século XVI, o único lugar onde ainda podiam ser encontrados na natureza era nas florestas reais polonesas, a oeste de Varsóvia. Os animais dali eram considerados extremamente raros, e guarda-caças especiais foram contratados para protegê-los. Mas seu número continuava a minguar. Em 1557, foram contados cerca de cinquenta auroques. Quarenta anos depois só restava a metade, e em 1620 um único auroque – uma fêmea – continuava vivo. Ela morreu em 1627. E os auroques conquistaram assim, como diz o escritor holandês Cis van Vuure, “a honra duvidosa de terem sido o primeiro caso documentado de extinção de uma espécie”. (O caso seguinte foi o do dodô, quatro décadas mais tarde.)

O auroque ficou essencialmente esquecido até o começo do século XX, quando surgiu uma verdadeira enxurrada de estudos sobre o animal. Na década de 20, dois irmãos alemães, Heinz e Lutz Heck, ambos diretores de jardins zoológicos, decidiram tentar reconstituir o auroque por seleção retroativa, com base no material genético preservado em bois domesticados. Isso ocorreu, claro, muito antes dos exames de DNA – antes mesmo da própria descoberta do DNA. Para guiar seus esforços, os dois irmãos contavam principalmente com antigas representações de auroques, muitas delas produzidas por pessoas sem contato direto com o animal. Escolheram vários tipos de bois para seus esforços de seleção: Heinz, que dirigia o zoológico de Munique, cruzou, entre outras raças, o boi escocês das Highlandse o Angler vermelho alemão, enquanto Lutz, diretor do zoológico de Berlim, combinou Miúras espanhóis com bois da Córsega e da região francesa de Camarga.

Ainda assim, ambos afirmam que seus esforços produziram resultados similares, os quais, segundo eles, provavam que “o princípio fundamental da seleção retroativa (também chamada de dedomesticação) estava correto”. Muito embora tenha continuado a cruzar seus meios-sangues, Heinz decidiu que o projeto tinha sido concluído com sucesso. “O boi selvagem, o auroque, voltou a existir”, escreveu ele.

Pouco tempo depois, o projeto se viu emaranhado na política alemã da época. Em 1938, Lutz, nazista ferrenho, foi nomeado para a chefia do Departamento de Florestas do Terceiro Reich. Sua ideia de tornar a produzir o auroque se adequava perfeitamente ao projeto nazista de restaurar, através da reprodução seletiva de seres humanos, o mítico passado ariano da Europa. Lutz enviou alguns de seus “auroques” para a floresta de Rominten, na Prússia Oriental – hoje Polônia –, onde ficava o terreno de caça favorito de Hermann Göring. Outros animais da raça Heck foram transportados para terras de propriedade de Göring, ao norte de Berlim. A maioria – e talvez a totalidade – desses animais foi morta perto do final da Segunda Guerra. (Segundo Clemens Driessen, um acadêmico holandês que estudou os irmãos Heck, Göring em pessoa teria abatido a tiros parte do gado de sua propriedade quando os soviéticos se aproximaram de Berlim.) Mas alguns dos bois da raça, no zoológico de Munique e em parques de Augsburgo, Münster e Duisburgo, acabaram sobrevivendo.

Ao longo dos anos, enquanto a raça Heck era criada tranquilamente em nações antes ocupadas pelos nazistas, como os Países Baixos – são descendentes dos animais criados em Munique os bois que hoje pastam na reserva de Oostvaardersplassen –, esses animais nunca se livraram de sua associação ao fascismo. Muitos os consideram uma versão veterinária dos Diários de Hitler – em parte horror, em parte piada. Pouco tempo atrás, quando um criador inglês importou algumas cabeças da raça Heck da Bélgica, o caso chegou aos jornais do país.
“‘SUPERVACAS’ NAZISTAS EMBARCADAS PARA FAZENDA DE DEVON”, publicou o Guardian.

“O REICH DOS MIL BANDIDOS”, disse uma das manchetes do Sun.
À medida que novos achados de restos de auroques foram feitos, e que pesquisas mais sofisticadas foram desenvolvidas a partir desses vestígios, ficou claro que a criação dos irmãos Heck estava muito distante do original: os animais da raça Heck são pequenos demais, seus chifres têm a forma errada e suas proporções físicas são outras. E tudo isso levou a um novo esforço, dessa vez desnazificado, para a produção re-troativa de auroques. A base desse projeto fica na cidade holandesa de Nijmegen, cerca de 100 quilômetros a sudeste de Amsterdã, e é totalmente independente de Oostvaardersplassen. Ainda assim, reflete boa parte da filosofia da reserva, segundo a qual “nada do que se perdeu está perdido para sempre”. Assim, como eu já me encontrava mesmo nos Países Baixos, decidi fazer uma visita ao local.
 
uidado”, advertiu-me Henri Kerkdijk. O dia estava de novo inesperadamente azul e caminhávamos por um pasto malcuidado na direção de uma linha de árvores. Em reação olhei para trás, o que foi um erro, pois na mesma hora pisei num belo monte de bosta de vaca. Enquanto raspava a bosta dos meus sapatos, tentei calcular o quanto o monte seria maior caso tivesse sido produzido por um auroque de verdade.

À sombra das árvores, havia mais ou menos uma dúzia de animais de cores e tamanhos variados. Kerkdijk apontou para dois touros pretos num trecho do pasto. O primeiro se chama Manolo Uno. Tem 2 anos de idade e ainda não chegou a seu tamanho de adulto, mas já mede mais de um 1,5 metro na cernelha. Tem o focinho acinzentado, uma faixa clara no dorso e chifres torcidos para a frente que lembram o touro Ferdinando, do desenho da Disney. Não tenho ideia do grau de semelhança com um auroque autêntico que o novilho apresenta; de todo modo, pareceu-me um animal muito imponente, maior e de aparência mais ameaçadora que os bois da raça Heck da reserva de Oostvaardersplassen. O segundo touro, Rocky, é um ano mais novo que Manolo, mas quase do mesmo tamanho, o que Kerkdijk considera um sinal especialmente promissor. “Aquele ali vai ser realmente muito alto”, diz ele.

Quatro anos atrás, Kerkdijk se associou a um consultor ambiental chamado Ronald Goderie para dar início ao projeto TaurOs, cuja finalidade declarada é “uma tentativa séria de reconstruir o auroque”. (Num texto recente sobre o projeto, os dois fazem pouco do gado da raça Heck, “considerado um fracasso por especialistas”.) Quando estive com eles, o projeto já tinha gerado quase 100 bezerros, dos quais Manolo Uno e Rocky foram pronunciados os mais semelhantes aos antigos auroques.

Para criar seus bezerros, Kerkdijk e Goderie cruzaram várias raças ditas primitivas de gado – variedades desenvolvidas há centenas ou até milhares de anos, e portanto com uma probabilidade maior de terem conservado traços próprios da espécie anterior. Manolo, por exemplo, resultou do cruzamento entre uma linhagem italiana chamada Maremmana primitiva e uma raça espanhola conhecida como Pajuna. Aos 2 anos, o boi já tinha idade para participar de um novo cruzamento, mas se recusou a ceder qualquer fração do seu sêmen para finalidades de inseminação artificial – obstinação que Kerkdijk considera um indício de sua virilidade, e mais um sinal positivo.

Noventa anos depois do trabalho dos irmãos Heck, a ideia por trás da seleção retroativa permanece basicamente a mesma. Se diferentes raças de gado primitivo preservam diferentes porções do material genético do auroque, a recombinação dessas porções deverá produzir algo próximo – embora não exatamente idêntico – ao original. (Kerkdijk e Goderie decidiram que seu novo animal não deve ser chamado de auroque, mas de “tauros”.) Cientistas da Inglaterra e da Irlanda conseguiram sequenciar um pequeno trecho do DNA do auroque – o DNA mitocondrial –, usando um osso datado de 7 mil anos atrás, encontrado numa caverna em Derbyshire. Foi proposto a outros cientistas que tentassem sequenciar o genoma completo. Quando – ou, na verdade, se – esse trabalho for concluí-do, deverá ser possível avaliar o quanto cada um dos animais produzidos dessa maneira se aproxima de um auroque genuíno, analisando uma amostra de seu sangue ou um pouco de sua saliva.

De acordo com o cronograma traçado por Kerkdijk e Goderie, já deverão existir rebanhos de “tauros” em torno de 2025. A essa altura, os dois esperam que vastas extensões da Europa tenham sido devolvidas ao estado natural, e que seja permitido aos animais perambular por elas. De que modo, ao longo dos anos que ainda faltam, serão bancados os custos dos cruzamentos e da criação, além das avaliações genéticas, permanece uma questão pouco clara. No momento, o projeto é sustentado, em parte, pelo aluguel de animais a parques naturais e, em parte, pelo abate de parte do rebanho. Sua carne é comercializada como “carne bovina silvestre”, e atinge bons preços em Amsterdã, onde só se encontra disponível para fregueses que se inscrevam antecipadamente numa lista. Kerkdijk diz que as vendas de “carne silvestre” aumentaram dramaticamente no último ano, devido ao interesse pelo tauros. Perguntei-lhe se poderia experimentar.
“Você trouxe seu arco e flecha?”, perguntou-me Goderie.
 
omo muito do que se encontra na Europa nos dias de hoje, o termo rewilding, “renaturalização” ou “retorno ao natural”, é uma invenção americana. Foi cunhado na década de 90 e proposto pela primeira vez como estratégia conservacionista por dois bió-logos, Michael Soulé, hoje professor emérito da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, e Reed Noss, professor e pesquisador da Universidade Central da Flórida. Segundo Soulé e Noss, o problema da maior parte dos projetos de conservação é que se limitam a propor a proteção do que já existe. No entanto, o ambiente atual não passa de uma sombra do que foi. Na maior parte dos Estados Unidos, por exemplo, grandes predadores como lobos e pumas foram exterminados. Sem os predadores do topo da cadeia, afirmam os dois, os ecossistemas não têm mais como funcionar como sistemas.

“Um cínico poderia descrever a renaturalização como uma obsessão atávica”, escrevem eles. “Um crítico que a encare com mais simpatia poderia rotulá-la de romântica. Afirmamos, porém, que a renaturalização não passa de realismo científico.” Segundo Soulé e Noss, a renaturalização exigiria, além dos predadores, a criação de vastos “centros”, reservas rigorosamente protegidas e corredores migratórios ligando umas às outras. E resumem sua fórmula como “os três C’s: centros, corredores e carnívoros”. Essas ideias se encontram hoje consagradas entre os biólogos conservacionistas, mesmo os que não se descreveriam necessariamente como partidários da renaturalização.

Em 2005, uma dúzia de biólogos levou o conceito de renaturalização ainda mais longe. Num artigo publicado na revista Nature, o grupo apresentava um plano para o que chamava de “renaturalização do Pleistoceno”.
 
uando os seres humanos chegaram à América do Norte, por volta de 13 mil anos atrás, em torno do final da última era glacial, exterminaram a maior parte dos grandes mamíferos do continente, produzindo lacunas em algumas funções ecológicas fundamentais, e os renaturalizadores do Pleistoceno propõem a introdução de animais que possam substituí-los. Por exemplo, elefantes africanos ou asiáticos poderiam ser soltos para ocupar o nicho do desaparecido mamute de pelagem longa. Da mesma forma, camelos-bactrianos, nativos das estepes da Ásia Central, poderiam preencher o nicho vago deixado pelo Camelops desaparecido na América do Norte. Os autores – quase todos acadêmicos – imaginam uma série de experiências em pequena escala, culminando na criação de “um ou mais ‘parques da história ecológica’”, que cobririam “vastas extensões de trechos economicamente deprimidos das Grandes Planícies”. Nesses imensos “parques históricos”, elefantes, camelos e leopardos africanos – introduzidos em substituição ao extinto leopardo americano – viveriam em liberdade. Os ecologistas classificam seu plano como “uma alternativa otimista” ao que, de outro modo, tende a ser um futuro tomado por “paisagens cada vez mais dominadas por ervas daninhas” e pela “extinção da maioria dos grandes vertebrados, se não de todos”.

O principal autor do artigo da Nature, Josh Donlan, hoje dirige um grupo sem fins lucrativos chamado Advanced Conservation Strategies [Estratégias Avançadas de Conservação] e é professor visitante na Universidade Cornell. Ele descreve as reações à renaturalização do Pleistoceno como “bimodais”.

“As pessoas adoraram ou detestaram a ideia, tanto na comunidade científica como entre o público em geral”, conta-me ele. Nos Estados Unidos, a renaturalização do Pleistoceno nunca chegou a avançar muito; a única medida prática adotada foi a reintrodução, numa propriedade particular do Novo México, de um jabuti gigante conhecido como jabuti-de-bolson (o Gopherus flavomarginatus desapareceu dos Estados Unidos há cerca de 8 mil anos, mas sobreviveu no México em pequeno número).

Por acaso, porém, um cientista russo chamado Sergey Zimov teve uma ideia semelhante. Também em 2005, publicou um artigo na revista Science descrevendo uma reserva experimental que tinha criado na Sibéria, batizada de Parque do Pleistoceno. A finalidade de Zimov era mostrar que essa área ainda era capaz de sustentar numerosos rebanhos de grandes mamíferos, como ocorria há 10 mil anos.

“Não estamos tentando exatamente reconstruir o ecossistema da estepe dos mamutes, já que não temos mais mamutes”, declarou-me Zimov recentemente pelo telefone, de São Petersburgo. “Mas estamos tentando reconstituir o ecossistema altamente produtivo das estepes.” Zimov introduziu renas e uma variedade de cavalos de grande resistência ao frio conhecidos como Yakuti. Poucos anos atrás, importou cinco bisões-europeus para o parque, mas apenas um deles – um macho – sobreviveu ao segundo inverno. “Agora estamos procurando companheiras para ele”, disse Zimov. Vários bois-almiscarados também foram introduzidos, mas eram todos machos. “Estamos à procura de fêmeas para eles também”, contou-me Zimov. O Parque do Pleistoceno, que fica no nordeste da Sibéria, é tão remoto que quase nunca foi visitado por alguém que não esteja conduzindo uma pesquisa.

Depois que os europeus adotaram o termo, a renaturalização tornou a mudar de sentido.
O conceito tornou-se ao mesmo tempo menos ameaçador e gastronomicamente mais atraente: espera-se que os visitantes das áreas renaturalizadas do continente possam não só participar de toursà moda de safáris, mas também usufruir da cozinha local. (Um parque em Portugal, em pleno processo de renaturalização, tem à venda uma marca própria de azeite de oliva.)
 
ewilding Europe, a organização que vem defendendo esse tipo de iniciativa com mais vigor em todo o mundo, foi fundada três anos atrás por dois holandeses, um sueco e um escocês. Um dos holandeses, Wouter Helmer, mora não muito longe do local onde pastam Manolo e Rocky, e um dia depois de visitar os touros fui encontrá-lo em sua casa, que fica à beira de um parque, numa pequena clareira que me trouxe à mente a história de Cachinhos Dourados e os Três Ursos.

Helmer explicou que a finalidade da Rewilding Europe é, na verdade, criar versões gigantescas da reserva de Oostvaardersplassen, cada uma delas com uma área pelos menos quinze vezes maior. “Frans Vera sempre fala que, se os holandeses podem, todo mundo pode”, disse-me ele. Para dar início ao projeto, o grupo levantou mais de 6 milhões de euros, boa parte vinda da loteria holandesa de códigos postais, que pode ser comparada a uma loteria do Estado, salvo pelo fato de o valor arrecadado destinar-se todo à caridade. No ano passado, depois de receber vinte propostas de organizações de todo o continente, o grupo escolheu cinco regiões para servir como o que chama de “áreas-modelo de renaturalização” – parte do delta do Danúbio, na fronteira entre a Romênia e a Ucrânia; uma área ao sul dos Cárpatos, também conhecidos como Alpes transilvanos; e áreas do leste dos Cárpatos, das montanhas da Croácia e do oeste da Península Ibérica. A qualidade que essas áreas têm em comum é que cada vez menos pessoas desejam viver nelas.

“A economia inexiste em vastas áreas da Europa”, disse-me Helmer. “E acho que não devemos perder a oportunidade que isso representa.” A ideia é promover a renaturalização dessas áreas unindo reservas existentes a extensões de terra abandonada e a propriedades agrícolas cujos donos possam ser convencidos a permitir que um rebanho de auroques (ou tauros) tenha livre trânsito através da sua propriedade. (A compensação para os agricultores seria o influxo de turistas com as carteiras bem abertas que se imagina que venha a ocorrer.)
Helmer sublinhou que a Rewilding Europe não está particularmente preocupada em saber se a nova paisagem a ser criada será parecida com a antiga, que foi alterada ou destruída. “Não olhamos para trás, mas sim para a frente”, disse ele a certa altura.

“Tentamos evitar discutir demais o ambiente natural”, observou ele mais adiante. “Para nós, não é isso o mais importante – saber se, no fim das contas, chegaremos ou não a um ambiente autêntico. Vai ser mais natural do que era, e é isso que conta.”
 
ma bela manhã, não muito tempo depois dessa conversa, eu estava sentada numa pequena choupana, contemplando uma pilha de frangos mortos. Todos tinham as penas muito brancas salpicadas de sangue, e jaziam com as cabeças semidecepadas e as pernas destroncadas em ângulos grotescos. Depois de algum tempo, meia dúzia de abutres-fouveiros pousaram numa árvore próxima. São imensas aves com a cabeça clara e o corpo escuro, e o grupo da árvore parecia uma reunião de harpias. Pouco depois, um par de abutres-negros apareceu e começou a descrever círculos no céu acima de nós. Os abutres-negros se mostram ainda maiores que os fouveiros, com envergaduras que podem chegar a 3 metros. São aves majestosas, de ar funéreo, e contemplá-las transmite uma certa premonição da nossa própria morte.
Os frangos foram jogados ali como parte de um programa de alimentação suplementar para as aves carniceiras, que, aparentemente, não estavam com fome. Os abutres-negros continuavam a descrever círculos, os fouveiros mantinham-se empoleirados na árvore, e a choupana foi ficando sufocante. Ao cabo de algumas horas, meu companheiro de observação, Diego Benito, concluiu que o espetáculo que tínhamos vindo assistir não iria ocorrer, e então, decepcionados, fomos embora.
Benito cuida de uma reserva natural de pouco mais de 5 mil hectares na extremidade ocidental da Espanha, chamada Campanarios de Azába. A reserva faz parte da “área-modelo” no oeste da Península Ibérica da organização Rewilding Europe, e das cinco áreas é a de mais fácil acesso. Ainda assim, a viagem dura quatro horas de carro a partir de Madri, atravessando as províncias de Ávila e Salamanca.

 Como os abutres não estavam cooperando, Benito sugeriu que percorrêssemos o resto da reserva. Até pouco tempo atrás, a área era uma propriedade rural, salpicada de carvalhos cujas nozes se destinavam à engorda dos porcos. Fazia um calor seco e avançávamos a custo, em meio à vegetação mais baixa. Muito embora eu soubesse que a cidade mais próxima se encontrava a poucos quilômetros de distância, o terreno parecia desolado a ponto de permitir que uma pessoa se perdesse, e me lembrei de uma ocasião no deserto do Novo México em que interpretei erradamente um mapa das trilhas e acabei caminhando em círculos por muito tempo.

Encontramos alguns belos cavalos que, contou-me Benito, pertenciam a uma rara e antiga linhagem espanhola conhecida como Retuertas. Mais adiante, chegamos a uma área cercada tomada por uma rede de pequenos túneis claramente produzidos por mãos humanas. Tinham sido cavados, explicou-me Benito, para facilitar a vida dos coelhos, que na Espanha – e na verdade em toda a Europa – foram dizimados por uma doença conhecida como mixomatose. O vírus que a provoca foi intencionalmente introduzido numa propriedade particular da França como medida de controle da população de coelhos na década de 50, e a partir dali espalhou-se por todo o continente. (A perda dos coelhos levou a um declínio na população dos predadores de coelhos, como o lince-ibérico, hoje considerado em risco crítico de extinção.) As cercas teriam o papel de proteger das raposas alguns coelhos reintroduzidos, mas os coelhos se recusaram a permanecer na área, de maneira que os túneis cercados agora estavam vazios. E o mesmo ocorreu com uma série de plataformas circulares construídas em alguns carvalhos como bases para ninhos de cegonhas-negras. As cegonhas simplesmente não se interessaram.

“Nunca se pode ter certeza integral do sucesso, porque animais silvestres são animais silvestres”, disse-me Benito. Estávamos à procura de algumas cabeças de gado Sayaguesa recém-compradas com dinheiro da Rewilding Europe, mas os animais pareciam preferir manter-se à distância. O gado Sayaguesa constitui outra linhagem de interesse para o projeto TaurOs, iniciativa em que Benito me disse estar ansioso por se envolver. “Se você quer vender um produto, precisa de uma boa história”, disse ele.

Naquela tarde, depois de um almoço de costeletas de porco locais (e muito saborosas), saímos da reserva de carro e fomos até o alto de um morro próximo. Pelo caminho, passamos por alguns povoados que, explicou Benito, estavam em processo de desaparecimento; as escolas tinham fechado por falta de crianças e só os velhos continuavam por lá. Numa dessas cidadezinhas, La Encina, paramos para conversar com o prefeito, um homem idoso e miúdo chamado José Maria. Segundo ele, o número de residentes em La Encina tinha caído mais de 50% apenas nos últimos quinze anos. E via com entusiasmo a ideia da renaturalização, porque tinha “muito potencial para atrair turistas”.

Do alto do morro, podíamos avistar Portugal, a uns 25 quilômetros de distância. O vale aparecia como um quadriculado de campos castanhos, florestas de pinheiros plantadas durante a era franquista e carvalhos distribuídos a espaços regulares, como os que eu tinha visto na reserva. Segundo um folheto que Wouter Helmer me deu, toda essa região estaria pronta para a renaturalização, devido ao “despovoamento rural”; a ideia seria converter de imediato pelo menos mil quilômetros quadrados, ou 100 mil hectares.

Tentei imaginar todo aquele vale transformado numa versão ibérica da reserva de Oostvaardersplassen. Sem dúvida era uma área bem menos povoada que os arredores de Amsterdã. Ainda assim, percebi, eu não sabia ao certo o que devia visualizar. As plantações de pinheiros não podiam ser consideradas naturais: seriam derrubadas? E os carvalhos podados, e os porcos que ainda fuçavam em volta deles à procura de nozes, e os campos castanhos, e todas as cidadezinhas agonizantes à espera do influxo de turistas?
 
m dos apelos da renaturalização é que ela representa uma agenda proativa – como dizem Josh Donlan e seus colegas do retorno ao Pleistoceno, uma alternativa produtiva a simplesmente ficar sentado, chorando o que se perdeu. Num mundo renaturalizado, nem mesmo a extinção precisa ser vista como irrevogável; o auroque se deitará ao lado do lince, e elefantes percorrerão as pradarias ao lado de cervos. Num planeta cada vez mais dominado pelos seres humanos – hoje, até os oceanos mais profundos estão sendo alterados pela ação das pessoas –, deve fazer sentido imaginar a natureza também como uma criação humana. Quanto mais eu via, mais entendia por que os europeus, em particular, sentem-se atraídos pela ideia, e mais queria ser convencida de que pode dar certo. No entanto, quando me lembro dos Campanarios de Azába, quando penso nos túneis vazios construídos para os coelhos e nas plataformas desocupadas destinadas às cegonhas, eu fico em dúvida.

Anoitecia quando descemos o morro. Em seu celular, Benito recebeu uma ligação de um agricultor local que tinha um porco morto e achava que os abutres poderiam se interessar. No caminho de volta, paramos para ver o que havia acontecido aos frangos. Todos tinham sido consumidos até os ossos.

13 de fevereiro de 2014
Revista Piauí, 78
ELIZABETH KOLBERT