"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

DEMOCRATITE PALACIANA E O SUFRÁGIO TEOCRÁTICO




Para além do comedimento de uma insípida digressão teórica, costumeiramente entrincheirada no padrão de discurso “técnico e jus-acadêmico”, há de se denunciar, sem subterfúgios e à vista dos mais altos valores envolvidos, o caráter nada menos do que bestialógico atinente à iniciativa do “socialista e libertário” deputado federal Cabo Daciolo (ex-PSOL/RJ), traduzida na Proposta de Emenda à Constituição nº 12 de 2015.
Pretende tal parlamentar que o parágrafo único do Art. 1º da Carta Magna passe a vigorar com a seguinte redação: “Todo o poder emana de Deus, que o exerce de forma direta e também por meio do povo e de seus representantes eleitos, nos termos desta Constituição“.

Empreendida uma leitura bastante atenciosa, tanto da minuta normativa quanto de sua pretensa justificativa, chega a ser inacreditável constatar tamanha desinibição; esta última a indicar uma tendência de gradual receptividade ao rompimento com o Princípio da Laicidade do Estado.
Trata-se, unanimemente entre os cidadãos com o mínimo de massa encefálica, de uma rara e declarada coleção de impropérios obscurantistas. E pasmem: inconsequentes cento e setenta e dois congressistas subscreveram o documento!

Para além do ponto de partida, no qual o demérito do projeto é pressuposto, há de se simular um cenário futuro, muitíssimo factível, em que o fundamentalismo ganhe cada vez mais espaço na política nacional. Não há quem negue – salvo improvável juízo – o já elevado e ainda crescente nível de influência que as seitas religiosas detêm, insinuando-se em todas as esferas sociais: meios de comunicação, governos, editoras, instituições de ensino, grandes empresas, bancadas legislativas suprapartidárias e, inclusive, por meio de milícias paramilitares em formação.

A sacrossanta “liberdade religiosa”, tida praticamente absoluta, tem se constituído em verdadeiro salvo-conduto para a exploração dos desesperados e dos suscetíveis à manipulação psicológica. Seu vetor coletivo se mostra a cada dia mais imiscuído com o fisiologismo político, revelando um explícito projeto de poder, a pretexto do exercício de liberdades individuais irrestritas.

Até mesmo os partidos reputados historicamente ligados a esta ou aquela virtude ideológica têm sido, diuturnamente, apropriados pelo poderio econômico e tomados de assalto pelo crime organizado. Quem ousaria chamar à responsabilidade os líderes de quadrilhas sacerdotais, para os quais a salvação espiritual, no Reino de Deus, é antecedida pela dominação material, no Reino dos Homens?

No suposto “governo do povo”, à crua quantificação de vontades não corresponde qualquer compromisso qualitativo: a manada entoa seu coro e quem não gostou que vá, ingenuamente, elucubrar sobre o direito das minorias. Se todo o poder emana de uma maioria lobotomizada, e esta resolve delegar sua representação aos incólumes pontífices divinos, restará aos humanistas chuparem o dedo. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Ou alguém realmente acredita que no âmbito dos ditos “movimentos sociais” e demais concílios populares não há alguém puxando a cordinha por detrás?

Só se vence eleição e se governa após anuir com as regras de um jogo sujo, de cartas marcadas, não nos cabendo encampar as teses embasadas na ilusão do institucionalismo, que é relegado à virtualidade quando de transições como as que se anunciam.
Soa irônico o fato de que a defesa dogmática do sufrágio universal, causa primária da atual ameaça, seja feita justamente pela “elite da elite” brasileira: parte dos intelectuais e das pessoas de destaque em nossa sociedade.

Nunca cogitaram eles próprios a fatalidade de serem fagocitados pela horda de inimputáveis?

Não vislumbram os esclarecidos e os catedráticos que, em hipótese-limite, fosse referida Emenda à Constituição declarada desconforme ao texto originário, o problema prático e conceitual restaria, ainda assim, muito longe de ser sanado. Nada impede que se tenha o acinte de convocar nova assembleia constituinte onipotente, incondicionada e cuja autonomia e desvinculação com a ordem anterior são características reconhecidas intrínsecas.

A Democratite Palaciana, disseminada entre os seres pensantes que se rebaixam ao nível da plebe, assenta, invariavelmente, as bases de um vindouro Sufrágio Teocrático.

Por ocasião desta possível refundação de nossa república, os democratas convictos terão de – finalmente – se assumir ventríloquos da mítica “Vox Populi”, relegados ao passado e submetidos, agora, ao império da “Vox Dei”. Superado o erro original, hão de declarar ilegítima a ditadura da ignorância.

A concepção aristocrática virtuosa deverá emergir impoluta e alheia ao discurso majoritário, tempestivamente, sob pena de ingressarmos em uma nova Idade das Trevas, em pleno Terceiro Milênio, ao molde das teocracias já existentes e que se encontram em nítido movimento de expansão. E o pior de tudo: a justa resistência acabará por desencadear uma guerra civil de prognóstico incerto. 

29 de maio de 2015
Antonio Celeari é Bacharel em Direito pelo Largo de São Francisco (FD-USP) e autor do livro “Malleus Holoficarum: o estatuto jurídico-penal da Revisão Histórica na forma do Jus Puniendi versus Animus Revidere” (Chiado Editora: Lisboa, 2012).

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